A nova escravidão
Escrevo este texto no recesso de Carnaval, que veio em boa hora para interromper uma sequência assombrosa de dias de trabalho. Não digo isso por descontentamento com minha função, que está longe de ser fisicamente desgastante (um medo que cultivo desde a infância), mas como um alívio por finalmente poder dedicar tempo a coisas que realmente me interessam. Passo 70% do meu dia no trabalho, e me sobram algumas horas antes de dormir, disponíveis. Esse tempo reduzido foi mais do que suficiente para que eu lesse alguns livretos, que citarei logo à frente.
Diariamente, travo longos diálogos com meus conhecidos mais próximos. Em um deles, discutíamos o estoicismo e chegamos à conclusão de que a verdadeira liberdade está na disciplina e na busca por uma mente mais elevada.
“If you are ruled by mind you are a king; if by body, a slave”
Eu estava convencido de que evoluir diariamente em todos os âmbitos da vida, principalmente o profissional, era o jeito correto de viver neste século dos prazeres. Habilidades como pacote Office, Inglês, Power BI, Python, entre outras, são indispensáveis para uma carreira de sucesso. Ah, e não se esqueça da Smart Fit, do pilates, da corrida matinal, de ler seu Café com Deus Pai e de pagar o financiamento do seu BYD. Já percebendo esse padrão do socialmente aceito do século XXI, entrei em contato com a obra de Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço.
O primeiro capítulo tem um gosto amargo ou, como diria Clóvis de Barros, causa um certo desconforto. Nele, o autor faz um paralelo entre a sociedade e um sistema imunológico, que ambos são bons em expulsar o que é diferente – e isso funcionou até o fim da Guerra Fria. Porém, esse sistema não consegue expulsar o câncer, cujas células são idênticas às do nosso próprio organismo. Da mesma forma, a sociedade também enfrenta dificuldades com o que é igual. Hoje, vivemos um câncer que é a crise do igual, onde as pessoas disputam para ver quem se encaixa melhor no padrão do que o outro.
O autor também discorre que isso afetou especialmente o meio laboral, onde, no passado, a vigilância se dava por terceiros e os estímulos eram negativos, como a advertência, suspensão... Ora, esses métodos, apesar de eficazes, não são capazes de alcançar o potencial produtivo dos funcionários. Isso foi substituído por uma sociedade que anseia por "vencer na vida". Inspirados pelas redes sociais de burgueses desocupados, as pessoas trabalham até além de sua própria capacidade, almejando um dia usufruir da mesma condição. Essas novas máquinas são vigilantes do próprio trabalho, escravas de suas próprias metas. No livro, é ainda citado que, se os estímulos negativos criavam pessoas "vagabundas", os estímulos positivos atuais criam depressivos e ansiosos. E essa é a explicação para a epidemia de doenças mentais neste século. Esses males são causados pela expectativa que as pessoas têm sobre a própria realidade, uma realidade que, muitas vezes, elas não são capazes de realizar. Para bom entendedor, meia palavra basta. Essa roda de hamster é o ápice da alienação do capital sobre a classe trabalhadora, onde ela jamais poderá escapar, pois está presa a ela mesma. Não falamos mais em agregados; a alienação conseguiu atingir o caráter psicológico do indivíduo.
O melhor escravo é aquele que acha que é livre.
As armas não foram tão complexas: conteúdos de coach e bolsa de valores, livros de autoajuda, etc... tornaram a população algo pior que ignorante. No fim da vida, os fisgados por esse sistema poderão fazer como Ivan Ilitch e olhar para o passado, se perguntando se tudo aquilo valeu a pena. Valeu a pena abrir mão de relações pessoais profundas e sólidas? Valeu a pena deixar de conhecer lugares? Valeu a pena não buscar a transcendência por trás da vida? Pois, como esse personagem de Tolstói, o indivíduo positivista vive vendado, quase não conhece a realidade em que está, vive apenas pela promessa de um futuro perfeito, que será alcançado, nem que seja preciso destruir a todos ao seu redor para isso. E, no fim, como descrito em A Sociedade do Cansaço, é a destruição da própria mente, que já não suporta mais.
Bom, talvez esse tenha sido o motivo da minha repugnância a liquidez da sociedade atual, e os temas discutidos sejam quase sempre de caráter mais profundo. Digo com sinceridade que estimo muito o fato de eu poder dialogar com amigos e familiares com a mesma capacidade de percepção.
Entretanto, não me entenda mal. Não sou contra, nem defendo um modelo de vida franciscano. Acredito na meritocracia e acho que as pessoas não devem estagnar suas vidas. O que está sendo dito aqui é que a compulsividade em se ter sucesso, nos padrões atuais, pode destruir psicologicamente o indivíduo. E digo sucesso nos padrões atuais, pois, para mim, o sucesso se baseia em um modelo bem mais modesto, onde um salário que permita 1 a 2 viagens por ano, tempo durante a semana para leitura e filmes, e frequência na igreja, é, com toda certeza, sucesso.
Durante a semana, pude também ler Bartleby, o Escriturário. Uma história bem curta, mas eficaz em mostrar a impessoalidade do trabalho e como até mesmo algumas funções podem modificar a percepção da realidade de alguém. Em um movimento silenciosamente revolucionário, Bartleby recusa-se a seguir a lógica produtivista, expondo a contradição de um sistema que se vende como livre, mas que está pronto para te descartar
A Sociedade do Cansaço pode ser lida sob vários ângulos além do trabalho. Poderia falar aqui sobre como ela também reflete o consumo de conteúdo e o estilo de vida modernos, mas…
Prefiro não fazer.
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